A primeira onça-pintada a gente nunca esquece

Onça-pintada no Parque Nacional das Emas, Goiás. Foto: Adriano Gambarini

Adriano Gambarini

O ano era 2000. Eu já fazia parte do Instituto Pró-Carnívoros, uma instituição pioneira no estudo dos carnívoros neotropicais brasileiros. Naquela época, pouco se sabia sobre as onças-pintadas apesar dos trabalhos de dois grandes naturalistas, George Schaller e Peter Crawshaw, e uma leva de jovens pesquisadores que se embrenhavam nas matas de Foz do Iguaçu ou nos campos alagados do Pantanal. 

Foi quando recebi o convite para participar de uma captura de onça-pintada nos confins do Brasil Central, com uma equipe reduzida de biólogos, veterinário e dois ex-caçadores que contribuíam com seu conhecimento para capturar este que é o maior felino das Américas. Coincidentemente, a revista National Geographic estava iniciando suas atividades em terras nacionais, e assim ofereci uma matéria sobre esta captura na qual o enfoque seria a colocação de um colar com dispositivo de radio-telemetria e estudo biológico da espécie. 

Doze rolos de filmes na mochila, duas câmeras mecânicas e lá fui eu em busca de cliques certeiros. Mais do que isto, na realidade. Meu desejo de ver uma onça-pintada em vida livre transcendia o compromisso fotográfico e transitava no meu propósito maior que é observar a natureza, aprender com ela, entender a dinâmica da evolução que rege este mundo. 

Diferentemente de hoje, onde as capturas de grandes felinos ocorrem com uma técnica de armadilhas com laços, naquela época utilizavam-se cães de caça que rastreavam as onças e corriam em disparada pelos campos afora. E os ex-caçadores no encalço dos cães e nós correndo atrás de tudo isso! Não é preciso dizer a adrenalina que corria dentro de nós, o cansaço sendo ignorado durante os dias, os riscos inerentes numa atividade que não dava chance pra descuido ou desatenção. 

Obviamente, sendo a onça-pintada um predador topo de cadeia, extremamente adaptada àquele ambiente, não foram poucas as vezes ao longo dos dias em que ela simplesmente despistou os cães, que retornavam cansados e sedentos para perto dos seus donos. E todos voltávamos para o alojamento para um breve descanso de três ou quatro horas. Até a madrugada do dia seguinte. Chegamos a cruzar um rio três vezes em zigue-zaque; uma forma que a onça encontrava para tentar despistar seu próprio cheiro e assim fugir dos cachorros. 

No quinto dia, quando estávamos numa área de capim alto, tentando caminhar com dificuldades em direção aos latidos que ecoavam cada vez mais perto, quando o desgaste físico já era evidente na equipe e a mente estressada nos traía a todo instante com pensamentos negativos, ouvimos o grito de um dos ex-caçadores: “Ela está aqui, ela está aqui!” Correndo como podia, esqueci completamente do peso dos equipamentos até chegar próximo do veterinário Ronaldo Morato. O capim na altura do peito dificultava a visão e aumentava a ansiedade. Imaginei a onça ali, intocada a poucos metros de nós, estressada pelos cachorros que corriam em círculos e latiam compulsivamente. Foi quando alguém olhou pra cima; lá estava ela, camuflada na copa de uma árvore fina. Lá estava ela, cansada, tentando despistar um grupo de dez cachorros treinados para a atividade de caça e que, convenhamos, não tem sentido algum. Mas para meu consolo, o propósito ali era nobre. 

Lá estava ela, imponente e digna de ser o que é. E lá estava eu, observando seus movimentos precisos em cima de galhos finos, e com uma câmera na mão, disparando compulsivamente as trinta e seis poses de um único filme. 

E hoje, 22 anos depois, milhares de fotografias e vídeos, com dois livros publicados sobre a espécie, dezenas de matérias em revistas e documentários produzidos para institutos ambientais, confesso que não me canso de olhar para esta que é a primeira foto da primeira onça que tive a honra de ver. Um momento que nunca mais saiu da minha memória. E me sinto honrado de ter vivido. 

0 comentários

Deixe um comentário


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *