O lendário Jupará

Jupará na região do Rio Arapiuns, Pará. Foto: Adriano Gambarini

Adriano Gambarini
A prosa começa sempre da mesma forma.
—  Tem macaco da noite aqui?
— Tem demais! Outro dia mesmo apareceu uns quatro ali, pra lá daquela bacaba.
Se dou trela, o assunto cresce.
— Antesdonte tava caçano, e uns gogó-de-sola viero no fogo, se não dou conta dois pulava no meu pescoço!
E numa conversa que transita o surreal, tento seguir na prosa e entender aquelas palavras.
— Vamos hoje procurar uns pra eu fotografar?
— Bora!
Numa “tradução” simplificada, eu perguntei a um morador da Amazônia se existia Jupará ali na região. Jupará é uma espécie de carnívoro arborícola, de hábitos noturnos. Mas os ribeirinhas chamam de gogó-de-sola, ou macaco-da-noite, pois realmente parece um pequeno primata com grandes olhos, facilmente confundido com o verdadeiro macaco-da-noite. Já perdi a conta das vezes em que tive uma conversa assim com esses povos da floresta, e a resposta é sempre a mesma. Tem muito e sempre ataca os caçadores (uma inverdade, obviamente). Mas nunca encontrei, mesmo depois de anos fazendo transectos* noturnos. Confesso que o insucesso de não encontrar de modo algum gera frustração. Pois na busca existe um encontro de mundos. Adoro a forma como eles descrevem o bicho, sua fantasiosa agressividade, os ataques ao “meu primo” no pé da fogueira.
O bom disto tudo também é que nessa busca já encontrei outros habitantes noturnos. Macaco-da-noite, ouriço-cacheiro, várias espécies de urutau, veado-mateiro, cobra-papagaio, marsupiais, corujas diversas, pererecas minúsculas, roedores que desafiam a ciência – será espécie nova? Sem contar um sem-número de insetos.
E cheiros; devo dizer, quem um dia conheceu cheiro de onça, nunca esquece. Mas sentir esse cheiro quando se está sozinho na mata, num lusco-fusco de nada enxergar…não é bom, confesso.
Quanto ao Jupará? Finalmente o encontrei depois de anos de busca. Numa das minhas viagens à região do Rio Tapajós, fiquei muito tempo trabalhando em comunidades ribeirinhas no Rio Arapiuns. Ademar, líder de uma comunidade, estava comigo durante todo o dia tocaiando um ninho de harpia** e já era noite quando voltávamos cansados. Ademar trazendo dois jabutis que serviriam de refeição para a família. Foi quando ouvimos um piado sutil sobre nossas cabeças. Fiquei curioso com aquela vocalização que nunca tinha escutado, mas sabia que não era de macaco-da-noite. Iluminei e lá estavam dois olhos escondidos na folhagem! Finalmente estava diante de uma lenda! Apesar de curioso, o bicho é tímido demais, e sua aparição não chega a durar um minuto. Nesse tempo tenho que iluminar, preparar o flash, segurar a câmera (que pesa uns 10 kg com a lente, flash e bateria) a 90o graus para cima, encontrar o bicho na ramagem, atrair a curiosidade dele, focar o bicho a uns 20 m de altura…
Não estava conseguindo administrar o equipamento e a lanterna, e pedi ao Ademar que me ajudasse. Ele então colocou os dois jabutis de ponta cabeça no chão e iluminou pra mim. E num espaço de tempo que não durou 5 minutos, eis o resultado: Três ótimas fotos, 2 fotos escuras e desfocadas. Ademar perdeu um jabuti, ganhei muitos carrapatos e o enorme prazer de ver, e agora compartilhar, um bicho talvez tão fantasioso quanto as histórias que se perdem nos cantos da floresta.

*Percursos nos quais se contam e registram ocorrências dos objetos de estudo.
**Gavião-real

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