El Completo

Parque Torres Del Paine, Patagônia chinela. Foto: Adriano Gambarini

Adriano Gambarini

O ano era 2005. O dia, 31 de dezembro. Eu acabara de desembarcar em Punta Arenas, no sul do Chile, vindo da Antártida. Viagem solo, mas não queria passar o réveillon numa cidade onde não conhecia viv’alma; se tivesse que brindar comigo mesmo, que fosse ao ar livre. Horários de ônibus checados, tranqueiras gastronômicas na mochila. Quer saber? Vou pra Patagônia, Torres Del Paine! Seriam poucas horas de viagem, e se tudo corresse sem imprevisto (seria muita maldade de Murphy mandar um imprevisto no ultimo dia do ano de um viajante solitário), conseguiria chegar ao Parque, montar minha barraca e comemorar com um vinho chileno de caixinha. E, lógico, uma boa ceia regada a macarrões semi-prontos e atum em lata!

Olhei o mapa do Parque. A opção mais óbvia de caminhada seria o que os mochileiros chamam de W — uma trilha de uns 30 km, onde tem acesso a Torres Del Paine e costeia um lago azul turquesa. Fantástico seria, não fosse aquela expressão que ouvi de alguns mochileiros: “El Completo”, e que obviamente me chamou mais a atenção. Uma trilha que dava a volta em grande parte do parque, e que tinha a ‘módica’ quantia de 120 km! Fiz uns cálculos, seis, sete dias…tiro de letra! Bom, fiz a trilha inteira, mas percebi que ‘aquela letra’ eu desconhecia.

Torres Del Paine é um parque nacional fantástico, com 181 mil hectares, na divisa da Argentina com Chile. A maioria dos brasileiros chega ali pela Argentina, num trajeto que já virou objeto de consumo dos brasileiros — ir de carro até Ushuaia, que os argentinos nomeiam como a cidade mais austral do mundo (o que é inverdade, pois há uma pequena cidade chilena mais ao sul, Puerto Williams). De lá, vão subindo a Terra do Fogo até a Patagônia.

Comecei minha trilha às 7h do dia 1.º. Sempre achei simbólico começar o ano caminhando; dá a sensação de liberdade, que será um ano de muitas viagens, novidades, pé na estrada. A organização do Parque é digna de referência: o mapa é muito bem detalhado quanto às distâncias percorridas e o tempo entre as áreas permitidas para acampamento, o que dá ao viajante uma noção exata de como caminhar. Olhei o primeiro trecho, cerca de 18 km. “Vou seguir até o próximo”, pensei. “Estou empolgado, pique total, porque não?” 

No final do dia percebi o erro: início da caminhada, mais comida, mais peso na mochila; velocidade acelerada pela vontade, pernas e músculos ainda em adaptação, bota de neve (resquício da Antártida), sem mobilidade alguma para uma trilha de pedras. Resumindo, os seis dias restantes foram atormentados pelas bolhas lancinantes no pé, cansaço extremo pelo acúmulo de final de viagem (afinal, só o ano era novo), e um domínio quase que total daqueles pensamentos pessimistas atormentando a mente, mandando ondas de desespero e o velho pensamento: “O que é que estou fazendo aqui?”

Mas, como é a teimosia que muitas vezes nos proporciona experiências fenomenais, terminei a trilha trazendo comigo a emocionante visão do Glaciar Grey, abençoado por vários momentos de contemplação da grandiosidade deste mundo, dos diálogos interiores, dos voos de condor sobre minha cabeça, dos bosques centenários de árvores tortuosas, do banho frio “de quebrar ossos” no Rio Los Perros, dos campos floridos e das cachoeiras de águas verdíssimas, e do amanhecer mágico nos paredões rochosos de Torres Del Paine. Isto sem contar a curiosa afirmação que ouvi de um mochileiro, quando terminei a trilha: “¿Usted viene de el completo? Porque él es cerrado, con peligro del derrumbamiento!” (Você fez a trilha completa? Porque está fechada, com perigo de desmoronamento!)

Terminei a trilha El Completo com a voz do silêncio ecoando dentro de mim.

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