Amazônia extrema

Rio Juruena, Mato Grosso. Foto: Adriano Gambarini

Adriano Gambarini

Não é de hoje que transito pela Amazônia. São quase três décadas de viagens por todos os Estados da Amazônia Legal. E nos últimos quinze anos documentei uma média de três grandes expedições por ano, onde a logística envolveu horas de monomotor, helicópteros, barcos-voadeira, pequenas canoas, longas caminhadas, acampamentos improvisados e muita, muita paciência. Algumas viagens marcam mais do que outras, física ou psicologicamente.

Lá, não existe tempo para talvez. Lugar forte, onde tudo é exponencialmente extremo. E mesmo para quem é acostumado, a intensidade da rotina vai minando a energia, criando feridas, umedecendo a disposição. Deixei de contar o tempo em que fiquei imerso na floresta, enfurnado em acampamentos, tomando banho em igarapés escuros, vendo o sol apenas nas pequenas clareiras de árvores que caíam. Com os pés e roupas molhadas, que não davam conta de secar. Enfrentando hordas de abelhas e tantos insetos, que lambem seu suor e seus olhos, picam se forem molestados. Centenas deles, sem trégua. Só a calada da noite proporcionava sua ausência. Vi caboclos caírem de febre, no vai-e-vem da malária, e tantos outros que voltavam das trilhas, e calados pegavam seu ‘rancho’ de feijão, charque e farinha, e buscavam algum canto para alimentar o corpo castigado. As conversas diminuem à medida que o tempo passa; sinal de inércia, de fadiga física e mental. Dizem que a floresta é claustrofóbica. E é mesmo. A luz é pouca, a umidade é muita, a altura das árvores é extrema. A sensação que estamos sendo observados é constante. 

Ao mesmo tempo, é fantasticamente misteriosa, livre de conceitos sobre certo ou errado, bem ou mal. E apenas quem consegue ver a beleza escondida além de seus troncos seculares percebe que os monstros estão na imaginação. Tudo segue seu ritmo natural, e para tanto, é preciso entender este movimento.

O curupira, no final das contas, é amigo, e dá seu conselho: “Não pise distraído, não aja na insegurança, não vacile. Seja prudente”. Pois a surucucu está ali, camuflada, e só um olhar treinado é capaz de ver. Os mosquitos tatuquira também estão ali; uma picada sutil e quem sabe você perceba que já pousou na sua pele, e só lhe resta a esperança que aquele pequeno inseto não transmita a leishmaniose. “Léshi” para os íntimos’. As formas invisíveis de vida capazes de nos adoecer podem estar ali, nas águas dos igarapés.

Mas também está ali o gracioso vôo das araras, o sacudir dos galhos pelos grupos bagunceiros de macaco-aranha, os cantos tímidos dos passarinhos que não se vêem, mas estão ali, camuflados pela ordem natural da sobrevivência. O grito imponente dos guaribas. A curiosa irara pulando nos troncos também está ali, e a sensação deliciosa ao perceber que aquele agitado animal talvez nunca tenha visto um homem. O rastro dos gatos, grandes e pequenos, os ligeiros lagartos. A fotogenia graciosa das pererecas multicoloridas também está ali, entre as folhas secas do solo fértil da grande floresta.

O nascer memorável do sol sobre o lajedo de pedra, resquício de um cerrado que outrora dominara a Amazônia — também está ali.

Está ali a imponência das castanheiras, que deixa despencar seus duros ouriços e nos remete à desenfreada vontade de comer suas sementes. Estão ali nossos golpes de facão para expor as castanhas deliciosas, cuja casca abrimos com os dentes (e que meu irmão dentista não me condene!), para roer fervorosamente como a melhor das iguarias. 

Está ali, flutuando como a bruma de um frio amanhecer, a sabedoria dos povos originários que conhecem como a própria alma cada canto daquela floresta sagrada. Indígenas que vivem ali como seus antepassados, ou então que tiveram que se adaptar, entender a dinâmica dos brancos para se fazerem visíveis num mundo tragicamente construído a partir de uma ordem binária: bom ou mau, colonizado ou colonizador. Ante a floresta, somos apenas uma única espécie. Adaptemo-nos, ou a ordem da evolução resolve. Está ali toda harmonia de quem acredita estar neste mundo por um bem maior. 

Mas também está ali a ganância daqueles que não visam o futuro, e alheios a qualquer bom senso insistem em deitar aquele mar de árvores. Queimá-las até a última folha. Afinal, sua ignorância restrita acredita que extrair os bens naturais lhes dá mais lucro do que manejá-los. Mas ignoram que não dá futuro. E o futuro incerto será de seus herdeiros. 

Bendito sejam aqueles que, no entanto, estão ali com seus gestos ideológicos de quem percebe o valor da vida, das plantas e dos bichos, dos povos da floresta; moradores seculares ou visitantes passageiros, mas que sabem a força daquelas águas, da importância e cumplicidade das sombras definindo formas, em sinergia com as réstias de sol que iluminam seus caminhos. 

Benditos sejam aqueles que têm uma história para contar. E um traçado para percorrer. 

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