Panc-se: o planeta agradece.

por Marisa Furtado, do Madame Aubergine Food Lab*

Por que nossa alimentação anda tão pobrinha? Por que temos desertos alimentares num país de uma biodiversidade incrível? Ou por que continuamos incentivando as monoculturas que esgotam a terra? Porque as plantas alimentícias não convencionais, as Panc, não estão servidas à mesa.

Com o passar do tempo, fomos sendo aculturados com o gosto “facilitado” pela produção extensiva agroindustrial. Repare que até a palavra mudou: de agri+cultura para agro-indústria. Entendeu a diferença? Perdemos o caminho ancestral da natureza e da cultura gastronômica até a nossa casa. O traçado foi encurtado pela cadeia do alimento e por nós mesmos. 

O Brasil tem pelo menos quatro mil espécies de Panc conhecidas, agora catalogadas em livro, a partir de uma pesquisa maravilhosa do biólogo Prof. Dr. Valdely Ferreira Kinupp, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas. Aliás, foi ele quem deu o nome de Panc a estas belezuras. A obra é uma “bíblia” das Panc e um guia de identificação, sugestões de receitas, usos culinários, nutricionais e, em alguns casos, medicinais. Não pode faltar naqueles livrinhos que ficam enfeitando a cozinha dos mais animados. E ainda pode servir de guia de viagem turístico e mental, começando por um tour nas redondezas.

Há décadas, a nutricionista, pesquisadora e cozinheira Neide Rigo, da plataforma Come-se, explora as Panc de todo o país, mas também pertinho da minha casa, no bairro paulistano City Lapa. Experimente. Pelo menos um “dente-de leão” para fazer salada, cozido, empanado ou chá, você vai encontrar. É altamente diurético e tem que estar fora das zonas de alcance de gatos e cachorros. Cuidado!

Dente de Leão, que nasce até nas frestas das calçadas. Foto: Cortesia do Horto Didático Plantas Medicinais -HU/CSS-UFSC

A marginalização das Panc começa por esse medo do desconhecido. A maioria é inofensiva, mas tem que ser coletadas e preparadas de forma correta. Compõem uma alternativa de alimentação universal. São indicadas para quem não tem acesso a uma alimentação protéica, para quem busca mais saudabilidade e para quem encara o comer como ato político. Arregaçar as mangas, procurar e cozinhar Panc é uma mudança efetiva no comportamento alimentar. Felizmente, grandes chefs levantaram essa bandeira e hoje estamos falando mais delas. 

Uma queridinha é a “ora-pro-nóbis”, (Pereskia aculeata), originalmente mais consumida nas cidades históricas de Minas Gerais, que tem um potencial protéico gigante. Interessante a mensagem do nome em latim, alcunhado pelos curas: orai por nós. Tudo a ver com a fome e com o apelido de “carne dos pobres”, para os quais a língua enrolou e surgiram corruptelas como lobrobó, orabrobó, entre outras. De alimento necessário, que ironia, a ora-pro-nóbis se popularizou como cerca viva nos quintais e agora é resgatada como iguaria.

Na vice-liderança vem a taioba (Xanthosoma sagittifolium). Essa gosta de lugares fresquinhos com água por perto, fácil de encontrar nas serras, nas matas perto das praias e rios. Dá para usar tudo: as folhas e os rizomas. Mas tem que saber diferenciar a mansa da brava. Cuidado! 

Marisa Furtado com taioba na Serra do Mar, em Paranapiacaba (SP) – Foto: Arquivo Pessoal

Outra barreira para as Panc serem relegadas como mato, alimento de animais, coisa de silvícola, selvagem, ogra, é o tabu em torno delas, que atrapalha a popularização no consumo e só reforça o nosso complexo de colonizados. Sair à caça do alimento, mexer na terra, limpar e valorizar as Panc exige tempo, comer menos e melhor. Dá mais trabalho do que pôr no carrinho a bandejinha orgânica, em polipropileno, ou os produtos moderninhos e industrializados plant based, que também recebem aditivos e nos embalam no truque da consciência limpa, enquanto vamos causando mais impacto ambiental, gerando mais lixo, plástico etc. Isso sim, é evolução!  O desconhecimento sobre as Panc, incentivado por conjunturas e interesses comerciais, fecha o ciclo do preconceito. Por incrível que pareça, a periferia tem muito mais cultura Panc do que o pessoal da cidade. Além de a necessidade fazer a ocasião, os morros, terrenos baldios e acidentados são mais propícios para o crescimento livre dessas “pragas” de comer. 

Um exemplo clássico de destronamento de um alimento nacional, mas não convencional, foi da mandioca, a rainha do Brasil. Ao chegar aqui, a corte portuguesa introjetou a “sofisticação” do trigo no imaginário alimentar. O sobrenome “do reino” passou a denominar alguns ingredientes e processos de cocção. O “pão do reino” rapidamente tornou-se mais sexy que o “pão da terra”, feito de mandioca, painço ou milho. O trigo associado aos bons modos importados ocupou o lugar do que era autóctone e indígena. Pessoalmente, tenho o testemunho do meu pai português, que imigrou dos Açores para São Paulo, nos anos 1940, quando o trigo começava a ser cultivado no Paraná e Rio Grande do Sul. Segundo ele, era inacessível e só nos velórios os pãezinhos de trigo eram oferecidos de graça, com fartura para recompensar os que passavam a noite em claro. O governo vem subsidiando a importação do trigo desde os anos 70, gerando desigualdade para o agricultor nacional e para o desenvolvimento das Panc. É um modelo cada vez mais insustentável, a conta não fecha. 

Será agora que outros grãos e Panc terão mais chances? Será por isso a nova estratégia da indústria em introduzir cereais mais “rústicos, naturais e saudáveis” na sua dieta? Tanto para quem consome como para quem produz, já passou da hora de mudar e adotar mais Panc na vida. Por preconceito e falta de informação correta, elas continuam murchando em nosso menu. O planeta está colapsado. É preciso repensar, aprender e entender as Panc como parte da comida no futuro. 

Detalhe da capa do livro “Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil – guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas”, de Valdely Ferreira Kinupp e Harri Lorenzi/Instituto Plantarum de Estudos da Flora, 2014 – Foto: Divulgação

* O Madame Aubergine Food Lab não recebe incentivo comercial para divulgar produtos citados em seus artigos.

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