“Em 27 anos de trabalho na Amazônia, poucas vezes senti uma tristeza tão profunda”

Rio Juruena, Sul do Amazonas

Por Adriano Gambarini, da Terra Indígena Waimiri-Atroari (AM)

Hoje a Amazônia amanheceu nublada. Mas não por conta da densa condensação de umidade que forma os rios voadores e coloca esta grande floresta como protagonista no cenário do clima mundial. Estranhamente, as araras voaram em silêncio e o grito dos guaribas não reverberou na sombra das tatajubas. A respiração da vegetação em forma de orvalho nas folhas pareceu menos brilhante, quase como se o tempo estivesse ofegante. Uma melancolia pairou no ar nestas últimas horas.
Já estou há quase 30 dias em expedições pela Amazônia, das volumosas águas paraenses do Rio Tapajós e o drama do mercúrio que escorre da ganância cada vez mais ousada dos garimpeiros, aos buracos da longa estrada que corta a floresta e os corpos de bichos atropelados na terra indígena Waimiri-Atroari, na confluência entre Amazonas e Roraima.
E posso dizer, nestes 27 anos de documentação em centenas de expedições por todos os estados amazônicos, que poucas vezes senti uma tristeza profunda como esta que me assola agora. Uma sensação de impotência, de questionamento sobre todo o esforço que venho fazendo em mostrar a beleza deste bioma, que diante dos meus olhos sempre pareceu tão imponente, mas que nestes últimos dias mostrou sinais de cansaço.
A Amazônia que conheço nunca foi aquela das exposições fotográficas quase que ficcionais de tão digitalmente perfeitas. Sempre me relacionei com os silenciosos; cientistas que encharcam as botas e descobrem espécies novas de plantas, sapos minúsculos e peixes coloridos. Ou ainda pesquisadores que passam dias olhando para um espelho d’agua em busca de ocasionais corcovas de mamíferos aquáticos, na incansável busca de quantificar uma espécie rosa tão ameaçada quanto nós ante a obsessão míope de alguns pelo metal dourado. Na floresta que conheço me ajoelhei na terra preta com arqueólogos que expõem cacos milenares e escrevem as páginas da ancestralidade amazônica; ao que tudo indica, é mais antiga do que os escritos sagrados dos povos de um então dito Velho Mundo. Os povos indígenas com quem convivo não pertencem às filosofias antropológicas de redes sociais ou filmes cinematográficos. São anônimos para os eruditos, mas gigantes de conhecimento para si mesmos. Katukina, Paumari, Jamamadi, Deni, Apurinã, Apiaká, Rikbaktsa e tantos outros que me ensinaram a língua da comunhão e da solidariedade.
A Amazônia que conheço não é apenas de onças arredias ou sucuris gigantescas. Ali eu registro espécies novas de coloridos macacos e peixes diminutos no tamanho, mas grandiosos em sua importância. Em noites caladas busco o tímido jupará, o olingo misterioso, insetos quaisquer e fungos que definem a ordem natural da floresta, mas que não estão nos livros de fotografia que decoram salas-de-estar. Sempre conheci e aprendi a admirar uma floresta anônima, seja por minha própria percepção, seja pelo conhecimento científico, histórico e social que fui absorvendo ao conviver com pesquisadores, arqueólogos e indigenistas. Uma Amazônia que silenciosamente vem sofrendo ante implacáveis atitudes de pessoas que orbitam na periferia da vida, sejam aqueles marginalizados ou empoleirados no poder. No final das contas, garimpeiros, madeireiros, grileiros e políticos apertam o mesmo gatilho da arma fria que mãos quentes e peladas seguram. Mas as mãos que protegem, quando unidas, são ainda mais quentes. E é justamente por isto que devemos ser ainda mais concisos e densos, porque enquanto houver árvores menores protegendo as grandes sumaúmas, elas não cairão com o vento mais forte. Somos responsáveis pela Amazônia. E só a unidade da floresta é capaz de manter a integridade da vida.

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